quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Entre lugar nenhum


Foi o Rodrigo Amarante que disse que o propósito de toda viagem é voltar. Não voltar apenas no sentido físico, mas voltar-se para quem se era antes da viagem. Não quero falar aqui da experiência da viagem, do conhecer novos lugares, mas sobre um pequeno dispositivo, um pouco antigo, um pouco lento, que nos conduz, um veículo. São muitos os utensílios possíveis, mas aqui venho falar sobre esse que é o mais poderoso sobre mim: o ônibus.

 A minha viagem foi pequena, durou pouco mais que quatro horas. A paisagem era a costa do dendê baiano. O destino o aniversário de oitenta anos da minha avó. Durante ela eu reafirmava a capacidade que as mulheres parecem desempenhar tão bem, fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Então, lia o novo livro ruim da Elizabeth Gilbert e ouvia Caetano e Amarante no replay.  A música romantizava o trajeto e via beleza até onde não deveria. Na casa pobre de beira de estrada e em árvores alaranjadas que brotam aos montes nessa época. Sentia uma saudade e uma ausência. Um estar mim. De um eu que não existiu e quase morou ali na época da faculdade.

O ônibus tem esse poder. Ás vezes ele traz todas as cachoeiras de lágrimas. Ele é o meu catalisador das alegrias, das tristezas e dos pensamentos soltos. Nos dias de TPM ele estranhamente me acalma. Tive um pequeno período de ansiedade e pânico. Era no ônibus também que os meus demônios chegavam. O peito apertava, o ar faltava, a dor no coração era aguda. Morreria ali, certeza. Não uma grande certeza. Era a certeza da ansiedade.

Dizem que onde moram seus demônios também vivem seus anjos. Hoje o demônio do pânico foi embora. Não volte nunca mais e me deixe olhar tranquila pela janela enquanto o sol bate de lado e a paisagem rapidamente se transforma. Porque estamos na Bahia e pulamos da mata do cacau para a caatinga. É a caatinga que avisa que estou perto da chegada. Estou perto de casa. Por ter escolhido ir embora vivo entre casas, entre ônibus, entre lugar nenhum.  

O aniversário da minha vó foi bonito. Meus avós envelhecem com a ternura que só no fim da vida lhes foi permitido ter. Eu fico feliz e grata por ter chegado. Porque a viagem valeu a pena, sempre vale. Mas nem desarrumei a mochila, meia-noite entro no ônibus novamente.

Ilustração Sammy Slabbinck

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Marias

Eram duas solteironas, mãe e filha. As duas tinham uma aparência desconcertante e pegajosa. Extremamente pobres por pura convicção e capricho. Não se sabe como a mãe engravidou. Apareceu grávida e pronto. Do pai nada se ouvira. A menina herdou dela o olhar nervoso e a vocação para igreja neo pentecostais. Elas não encarnavam a figura das beatas católicas. Eram lhes conferidos alguns luxos e uma vida de menos penitências. Com o tempo o olhar nervoso se agravava.  Os olhos se esbugalham. A mãe nunca explicou sobre o pai. Seguiam como Maria, a virgem, mãe de Jesus. Elas seriam eternamente virgens. Porque é no gozo que o demônio se aproxima. E elas como boas cristãs haveriam sempre de temer o demônio, como bradou o pastor. Para diminuir a pobreza e gastar o tempo elas inventavam pequenas costuras que os parentes mais abastados compravam para esconder nas gavetas. Acreditavam principalmente que deus proveria a próxima cesta básica. No natal elas chegavam aos montes. Nesse período redobravam sua fé.