quarta-feira, 20 de maio de 2015

Perder a casa


Demora um pouco para perceber que a nossa casa não é mais nossa. Demorou para que eu percebesse que a casa onde cresci não era mais minha. Saí aos dezoito no início da faculdade e embora sempre retornasse, nunca mais voltei pra casa. Eu visitei diversas vezes, mas aquele lugar já não era mais meu.

Com o tempo os móveis vão mudando de lugar, trocaram os armários da cozinha. Não sabia onde ficavam as panelas, nem as tolhas. Os objetos cultivados no meu quarto começaram a desaparecer. O espaço vazio do guarda-roupa foi tomado por edredons e lençóis que não eram meus. A mudança foi lenta. Parte das coisas carreguei para a nova casa. Outras encaixotei pra levar depois, até o dia que percebi que nunca ia vai levá-las e não precisava de nada daquilo.

Perder meu cachorro ainda tem sido difícil. Sei que ele escolheu minha mãe como dona, mas não sei lidar com a displicência dele quando estou lá. Meu coração doeu quando ele rosnou na última visita. Dorothy em O mágico de Oz carrega Totó quando ciclone vem. Se não fosse extremamente egoísta teria levado Pit comigo.

O problema é que a casa nova não é de imediato sua casa. A constatação desse fato é aterradora. Você habita lugares, passa por eles, conhece todo tipo de gente e em alguns momentos desfruta da sensação do conforto da casa. Crescer é perder a casa e construir outra. Não uma casa física, mas aprender lentamente que não é apenas uma questão de ocupar lugares, mas criar espaços. Reinventar sua própria casa e ser dono dela.

A primeira mudança de casa foi eufórica, tinha todo ranço da adolescência que quer desesperadamente perder a casa. E eu sempre repito que é a melhor coisa que pode acontecer. Só não é fácil. Talvez por isso a mudança para Salvador foi tão dolorosa. Já tinha perdido a casa e sabia como tudo funcionava. Conhecia o sentimento que acompanha quem vai embora deixando o canto macio e quente do conhecido. 

A história do Mágico de Oz é sobre o retorno para a casa. Eu concordo com a Dorothy que não há lugar no mundo como o nosso lar.  Mas antes tem a estrada de tijolos amarelos, homens de lata sem coração e leões covardes. E no fim, assim como em Oz, são os nossos pés ou sapatos dourados que nos levam pra casa. Com ou sem Totó.

Ilustração Lizzy Stewart

terça-feira, 12 de maio de 2015

sobre livros


Eu não quero parecer chata, nem poser, nem nada. Mas pouca coisa neste mundo me deixa mais feliz do que livros. Digo melhor, tê-los. Livros físicos, de papel, com cheiro de tinta. É difícil explicar pra pessoas comuns e que sempre tiveram acesso a eles a alegria que toma conta de mim quando isso acontece. A única vontade que tenho é parar tudo e ir pra rede.

A rede é lugar tranquilo da minha infância onde me escondia do mundo. Onde o mundo era só meu. Sou filha de evangélicos que com as melhores intenções vencidas do prazo me presenteavam com livros da igreja. Eu também estudava em escola religiosa sem biblioteca e esse ciclo reduzia a quantidade de livros que chegavam até mim.

O meu dia glória só chegou ao descobrir que a biblioteca velha da minha cidade permitia o empréstimo de livros por alguns dias. Fiz diversos malabarismos para levar minha mãe até lá e fazer meu cadastro. Desde então desenvolvi esse amor imenso por bibliotecas, e mais tarde por livrarias. 

O primeiro livro que li da biblioteca foi “O mundo de Sofia” do Jostein Gaarder, era um livro enorme para um garota de treze anos. Eu praticamente vivia com ele, dormia, almoçava, ia pro colégio e claro, perdia muitas horas deitada na rede. Sofia era minha melhor amiga.

Aos 16 anos li Felicidade Clandestina de Clarice Lispector, também emprestado de uma biblioteca. E o meu coração deve ter parado por alguns segundo enquanto lia à crônica. De repente foi como se alguém conseguisse explicar exatamente o que eu sentia. E explicar da maneira mais bonita possível. Passei a amar Clarice incondicionalmente.

“Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. As vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.” (Felidade Clandestina, Clarice Lispector) 

Ilustração Katie Harnett

terça-feira, 5 de maio de 2015

O lugar das coisas


Uma maneira de acabar com o argumento batido que a internet é o que fazemos dela é olhar para o tipo de comportamento permitido em cada rede social online. Não é muito diferente das regras da casa tia, em algumas jamais você pode colocar o pé no sofá, em outras pode abrir a geladeira.

O fenômeno do textão no Facebook também é um bom exemplo. A regra é clara, sou esperto e politizado. O Facebook é o almoço de domingo. No Twitter você pode ser engraçado e irônico. Seus parentes, vizinhos e pseudos-conhecidos não estão lá, fale besteira a vontade. No Instagram já faz um tempo que ficou chato postar foto de comida. A patrulha foi grande, parece que ainda é permitido postar fotos do pôr d0 sol ou de arte urbana, ou uma frase qualquer num muro pichado.

Existem outras redes sociais de nicho como o Tumbrl e Pinterest. É certo que a função desses sites nunca ficou muito clara. Uma curadoria de tudo que eu queria ser ou os símbolos que me constituem. O Pinterest é como a casa daquele seu amigo com um quê de artista, todos os móveis conversam entre si, lá nada foi colocado ao acaso, as coisas tem uma história e um porque, e sim, são todas bonitas, ou razoavelmente contempláveis. Moraria facilmente dentro do Pinterest.

A rede social que tem me intrigado é o Snapchat. Cada lugar é estruturado de maneira a permitir certas condutas e a do Snap é clara, quero compartilhar, mas só por alguns segundos, depois tudo cai no vazio. Não é à toa que os adolescentes tomaram conta do lugar. Lembre quando você teve o chatíssimo trabalho de apagar fotos do seu ex do Facebook, ou pior, quando lembrou das fotos da adolescência estampadas no Orkut. Não deixar rastros parece ser a ordem da vez.

Bruno Latour disse que o jornal é a oração diária do homem moderno. As redes sociais onlines são a reza do homem pós-moderno. Continuo incrédula em todas elas, mesmo sabendo da realidade fragmentada e previamente criada apenas para ser, e claro, sigo atualizando.